No
interior de São Paulo, Justiça determinou que adolescente ficasse
provisoriamente com avó materna depois de iniciação na religião.
Fernanda Bassette
07/08/2020 - Época
Foto: Edilson DantasAgência O Globo
Eram 15 horas da quinta-feira 23 de julho quando a adolescente Luana*,
de 12 anos, descansava em um terreiro de candomblé em Araçatuba, no
interior de São Paulo, depois de ter dedicado cerca de quatro horas de
seu dia a fazer orações e danças para seu santo.
Estava deitada quando foi surpreendida por policiais armados que invadiram o centro religioso.
Eles chegaram ao local depois de receberem uma denúncia anônima de que a
menina estava sendo mantida em confinamento, era alvo de maus-tratos e
suposto abuso sexual.
Cinco dias depois do ritual, a garota seria
retirada dos pais, ambos seguidores da religião, e sua guarda provisória
seria concedida à avó materna, católica.
A decisão, de autoria do
juiz Emerson Sumariva Júnior, da 3ª Vara Criminal de Araçatuba, foi
lastreada em uma denúncia anônima de abuso, sem provas, e na imagem do
cabelo de Luana, agora raspado em decorrência do ritual de iniciação à
religião — e que seria um sinal de maus-tratos.
Luana estava
reclusa no terreiro Centro Cultural Ilê Axé Egbá Araketu Odê Igbô havia
sete dias, com o aval de seus pais, a manicure Kate Ana Belintani, de 41
anos, e o comerciante Washington Silva, de 48 anos, passando pelo que
seria uma espécie de “batismo” no candomblé.
O processo, que é chamado de renascimento, é complexo e costuma durar de dez a 21 dias, dependendo da tradição da casa.
Os pais de Luana são simpatizantes do candomblé, frequentam o terreiro, mas não são iniciados na religião.
A avó paterna é sacerdotisa, popularmente chamada de mãe de santo.
Desde pequena, Luana frequentou o local na companhia da mãe — os pais são separados.
Em geral, não se “pede” para entrar para o candomblé.
Há o que os seguidores chamam de “convocação”. No caso de Luana,
segundo o babalorixá Rogério da Silva Martins Guerra, sacerdote
responsável pelo terreiro, essa convocação teria surgido diante de
inúmeras queixas da menina de que teria visões e fortes dores de cabeça,
nunca explicadas pelos médicos mesmo após a realização de diversos
exames.
Ao ser abordada pelos policiais, Souza imediatamente negou qualquer acusação de abuso ou maus-tratos.
Luana foi questionada pela polícia e também respondeu com uma negativa,
confirmando que estava no terreiro por vontade própria, realizando um
tratamento espiritual.
No mesmo dia, depois de sair da delegacia, ela voltou para o terreiro para continuar seu ritual de iniciação.
Passou a noite lá, em companhia de Souza e da mãe.
A denúncia anônima e as duas incursões da polícia foram sucedidas por
uma decisão judicial que, menos de uma semana depois da denúncia e da
primeira batida policial, na terça-feira 28, a tirou da guarda de sua
mãe.
À avó da garota, Maria de Lourdes Vanzelli, de 72 anos, foi confiada a guarda provisória.
Os pais de Luana não foram ouvidos pelo juiz nem pelo Ministério
Público do Estado de São Paulo, que tem a prerrogativa de acompanhar
casos envolvendo menores.
“Sem mais nem menos, sem ser ouvida pelo
juiz, perdi a guarda da minha filha por causa dessa denúncia de
maus-tratos e confinamento, que nunca existiram. Nunca imaginei que
minha família seria capaz de fazer isso”, disse Belintani, afirmando que
foi alvo de preconceito religioso, por ser adepta do candomblé,
enquanto sua família é católica.
*Nome fictício, por se tratar de uma menor de idade